10 ANOS DE FICHA LIMPA: O impacto da aplicação da Lei Complementar 135/2010 na moralidade e na probidade administrativa dos cargos eletivos

Resumo: O artigo tem como objetivo analisar os aspectos da iniciativa popular como fonte da valorização à moralidade e à probidade administrativa dos candidatos a cargos eletivos e o impacto do endurecimento das causas de inelegibilidades após as hipóteses inseridas na LC 64/1990, com redação dada pela LC 135/2010, no pleito eleitoral, e seus reflexos na renovação política.

Palavras-chave: Lei das Inelegibilidades. Iniciativa Popular. Lei da Ficha Limpa. Impacto da Aplicação. Eleições. Moralidade. Probidade Administrativa.

  1. INTRODUÇÃO

Em setembro de 2009, foram entregues mais de 1,3 milhão de assinaturas de eleitores brasileiros à Câmara dos Deputados, com o objetivo de dar iniciativa ao projeto de lei que no ano seguinte se tornaria a Lei Complementar 135/2010, mais conhecida como Lei da Ficha Limpa.

A inserção desse diploma legal no ordenamento jurídico representou um grande avanço para a democracia brasileira no que diz respeito ao fortalecimento da moralidade, especialmente na investidura dos mandatos eletivos, já que seu principal objetivo foi a definição de critérios mais rígidos e transparentes para o ingresso dos respectivos cargos advindos das eleições.

Passados mais de dez anos de sua edição, a lei tem contribuído para a renovação política brasileira? O anseio da população no sentido de que a representação política seja mais ética está sendo alcançado? São questões que serão enfrentadas no decorrer deste artigo com base na análise de da- dos, principalmente os publicados pela Justiça Eleitoral após os sufrágios cuja referida lei foi aplicada

  1. A INICIATIVA POPULAR E SEUS REFLEXOS NO FORTALECIMENTO DA MORALIDADE E PROBIDADE ADMINISTRATIVAS

A Constituição da República de 1998 conferiu mecanismos de participação direta do cidadão no exercício do poder e, uma das formas expressivas é a da iniciativa popular que “é o poder atribuído aos cidadãos para apresentar projetos de lei ao Parlamento, desfechando, com essa medida, procedimento legislativo que poderá culminar em uma lei”.2

Essa modalidade de exercício da soberania popular está prevista no artigo 14, inciso III da Constituição Federal3 e regulamentada pela Lei 9.709/19984, sendo um impulso à participação do cidadão na formação das autoridades que definirão as determinações e políticas de Governo e de Estado.

Contudo, apesar da previsão constitucional, o empenho da sociedade civil nesse sentido não é corriqueiro, tanto que o movimento pela Lei da Ficha Limpa foi a quarta iniciativa dessa natureza em trinta anos. Isso revela o intenso engajamento dos cidadãos no sentido de trazer a realidade uma legislação que prestigiasse a moralidade e a probidade no contexto político brasileiro.

Nesse sentido, se faz de singularidade ímpar o voto do Ministro Ayres Britto, na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4.578, ao anotar que, embora não haja hierarquia entre leis complementares, a iniciativa popular amplia a democracia, confere a lei um tônus ainda maior, ainda mais denso de legitimidade5.

Sem dúvida, a mobilização da sociedade, enaltecida pelo especial envolvimento de instituições representativas de diversos segmentos, tais como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), foram essenciais para dar concretude a um dos mais legítimos preceitos de moralização do Estado.

Nesse contexto, como bem pontuou Mônica Campos de Ré, “com a aprovação da chamada Lei da Ficha Limpa, o povo pode experimentar a sua força. Foi um primeiro passo importante no processo de aprimora- mento de nossas instituições políticas”.6

  1. IMPACTO DO ENRIJECIMENTO DAS INELEGIBILIDADES NO PROCESSO ELEITORAL

Desde o início do processo legislativo da lei em comento era possível definir os fundamentos que caracterizariam as novas hipóteses de inelegibilidade, segundo José Jairo Gomes, as entidades civis que se empenharam no movimento que deu origem a iniciativa popular tinham a intenção de “estabelecer regra rígida e expedita, que resgatasse a ética no processo eleitoral, de sorte a prevalecer sempre a lisura”.7

Foram quatorze alterações inseridas na Lei de Inelegibilidades em prol da probidade e da moralidade no exercício do mandato, ampliando-se o leque de hipóteses hábeis a suprimir do cidadão sua capacidade eleitoral passiva.

As principais dizem respeito ao aumento do rol de crimes que barram a candidatura, a possibilidade do impedimento ocorrer ainda que a sentença criminal não tenha transitado em julgado, ou seja, a partir do julgamento por um órgão colegiado, e a ampliação do tempo que o agente político fica inviabilizado de disputar um cargo eletivo caso seja de fato enquadrado nas hipóteses elencadas pela lei.

Passamos agora, à análise das estatísticas dos sufrágios, advindos após a entrada em vigor da Lei da Ficha Limpa, de forma a entender os seus impactos positivos no processo eleitoral brasileiro.

3.1. Análise estatística das candidaturas consideradas inaptas em razão da aplicação da Lei da Ficha Limpa

Aprovada em 2010, a Lei da Ficha Limpa somente começou a produzir plenos efeitos em 2012. Isso porque, na época de sua aprovação, houve grande discussão a respeito de sua aplicabilidade, devido ao princípio da anterioridade eleitoral, assentado no artigo 16 da Constituição Federal8.

Em fevereiro do mesmo ano, no julgamento da ADI 4.578 e conexas Ações Declaratórias de Constitucionalidade – ADCs 29 e 30, o Supremo Tribunal Federal – STF decidiu pela constitucionalidade da norma e a moralidade, consubstanciada como valor constitucional, inclusive, foi um dos baluartes que nossa Corte Constitucional utilizou para afastar os questionamentos feitos à referida lei.

No julgamento, a Suprema Corte afirmou que os efeitos da lei em comento poderiam repercutir nas próximas eleições municipais e, a partir daí, a Justiça Eleitoral passou a julgar milhares de processos envolvendo principalmente casos de candidatos inelegíveis utilizando-a como base. Com isso, as teses, os estudos e a jurisprudência sobre o alcance da Lei da Ficha Limpa ganharam robustez e tornaram-se parâmetro de viabilidade ou não de inúmeras candidaturas.

Os dados relativos aos motivos da cassação de candidaturas começaram a ser divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE especialmente em 2016.

Contudo, em levantamento realizado pela Secretaria de Comunicação da Procuradoria-Geral da República, em conjunto com o Grupo Executivo Nacional da Função Eleitoral – Genafe, demonstrou que as Procuradorias Regionais Eleitorais de todo o país ajuizaram, no pleito de 2014, cerca de 502 ações de impugnação de registro de candidatura, sendo indeferidos inicialmente 241 registros, ou seja, 48% das ações obtiveram êxito perante a Justiça Eleitoral. Desse total de 502 impugnações, chegaram a julgamento no Tribunal Superior Eleitoral 283 processos, sendo indeferidos ao final 126 registros (44,5%)9.

Nas eleições gerais de 2018, segundo dados da Justiça Eleitoral, a Lei da Ficha Limpa motivou a rejeição de 169 candidaturas. O número representa 6,54% dos 2.585 pedidos anulados10. No entanto, do ponto de vista prático, o impacto da lei pode ser ainda maior se considerarmos que os partidos políticos evitaram apresentar a candidatura de quem se enquadraria na Lei da Ficha Limpa, além dos próprios aspirantes a candidatos, que podem ter deixado de solicitar sua inscrição considerando a norma. As estatísticas do TSE demonstram que dos considerados inaptos, 770 renunciaram a candidatura durante o processo de registro.

Outro ponto digno de nota são as estatísticas referentes às eleições municipais realizadas em 2016. Dados da Superior Corte Eleitoral concernentes a este pleito informam que 11,16% das candidaturas cassadas foram indeferidas por impedimentos elencados na Lei de Inelegibilidade, totalizando 2.115 candidatos que deixaram de concorrer naquele ano.

Com base na análise do cruzamento de dados fornecidos pelo TSE, é possível perceber que a Lei da Ficha Limpa tem sido efetiva em ltrar candidaturas que vão de encontro com o padrão moral ansiado pela sociedade, funcionando como relevante mecanismo no propósito de maior transparência e renovação política.

CONCLUSÃO

O agente público é um cidadão com responsabilidades amplificadas, intrínsecas à parcela de exercício de poderes estatais que lhe é confiada para representar uma coletividade, por isso, ao exercê-la, deve agir de maneira que prestigie a confiança e cada atribuição que lhe for creditada.

Dessa forma, a Lei da Ficha Limpa foi salutar ao possibilitar a ampliação das inelegibilidades e a efetivação das medidas impeditivas à candidatura, causando inegável impacto na competição político-eleitoral, não mais admitindo o candidato que comete atos incompatíveis com o exercício do mandato eletivo.

A LC 135/2010 revelou-se também como meio eficaz para inibir a corrupção, evidenciando sua natureza pedagógica, vez que devido a rigidez sancionatória, a inelegibilidade para os candidatos considerados “fichas sujas” incentiva outros políticos a não praticarem tais atos reprováveis e, consequentemente, não colocarem seus cargos ou suas candidaturas em risco.

A respeito dessa consideração, interessante o voto do Ministro Ayres Britto na ADI 4.578 ao anotar que, mais do que endurecer a legislação, “a Lei da Ficha Limpa tem essa ambição de mudar uma cultura perniciosa, deletéria, de maltrato, de malversação da coisa pública para implantar no país o que se poderia chamar de qualidade de vida política, pela melhor seleção, pela melhor escolha dos candidatos. Candidatos respeitáveis”.11

Importante ressaltar ainda que a aprovação da Lei da Ficha Limpa foi significativa no desenvolvimento da cidadania do povo brasileiro, tendo em vista o movimento criado desde a colheita de assinaturas para a propositura do projeto de iniciativa popular até a conclusão de sua tramitação, que culminou na aprovação da referida lei.

Em seus dez anos de vigência, esse diploma legislativo tem cumprido seus objetivos, especialmente por ter reforçado o anseio pela renovação política e a valorização da integridade daqueles que aspiram ocupar cargo eletivo.

Os valores da moralidade e probidade administrativa consagraram-se em verdadeiros pressupostos para o exercício do mandato, conferindo as- sim maior efetividade aos princípios estabelecidos no artigo 14, §9o, da Constituição Federal de 199812, tornando a Lei Complementar 135/2010 em um importante instrumento de ampliação da moralização pública e na conferência de maior normalidade e legitimidade às eleições.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.578/DF. Relator: Ministro Luiz Fux. Pesquisa de jurisprudência, acórdãos, Brasília, 29 de junho de 2012. Disponível em: <http://redir.stf. jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=2243342>. Acesso em: 18 dez. 2019.

BERNARDI, Dieison Picin Soares. Curso Didático de Direito Eleitoral. 2a. ed. Curitiba: Jeruá, 2016.

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Direito Eleitoral: A Efetividade dos direitos políticos fundamentais de voto e de candidatura. 1a. ed. Florianópolis: Habitus, 2018.

GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 12a. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

GONÇALVES, Luís Carlos dos Santos. Direito eleitoral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

Pontos Controvertidos sobre a Lei da Ficha Limpa. Belo Horizonte: Del Rey; ANPR, 2016.

RAMOS, André de Carvalho (organizador); KANNAN, Alice; … [et al.]. Temas dos Direito Eleitoral do século XXI. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2012.

TSE, Estatísticas Eleitorais. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/elei- coes/estatisticas/estatisticas-eleitorais>. Acesso em: 22 de dez. 2019.

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Advogada, com atuação nos Tribunais Superiores, Vice-Presidente do escritório Domenico Advogados Associados. Especialização em Direito Público e Eleitoral, MBA em Gestão Empresarial, atuando principalmente no Direito Tributário, Empresarial e Agronegócio.

Vice-Presidente do Instituto dos Advogados do Distrito Federal — IADF. Vice-Presidente do Instituto Justiça, Paz e Felicidade.

Advogado nos Tribunais Superiores;

Fundador da Domenico Advogados Associados;

Desembargador Eleitoral – TRE/DF (2017/2019);

Juiz da Propaganda Eleitoral (Eleições 2018);

Autor dos Livros: i) Decisões Eleitorais, e ii) Propaganda Eleitoral: a Dimensão da Liberdade de Expressão;

Doutorando e Mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Público e Eleitoral;

Membro da Associação Nacional dos Escritores – ANE; Membro do Instituto dos Advogados – IADF;

Conselheiro Seccional da OAB/DF (2013/2017);

Cidadão Honorário de Brasília.