I Ação de improbidade administrativa. Natureza Jurídica e aplicações das garantias penais.
Na lição de Rafael Carvalho Rezende de Oliveira (Licitações e contratos administrativos. 2015), fez-se mister a edição de uma norma que visasse inibir a corrupção, bem como garantir aos administrados o recebimento de uma boa administração, obediente aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública. Isto porque, segundo o referido autor, a corrupção é uma grande inimiga do sistema republicano que tanto preza pela coisa pública (Op. Cit. p. 29).
Dessa forma, visando desencorajar a pretensa corrupção no funcionalismo público, impedindo que terceiros se aproveitassem dos atos ilícitos praticados por membros da Administração Pública, entendeu-se por editar a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, Lei de Improbidade Administrativa (LIA).
Na referida norma, existem sanções para aqueles administradores denominados ímprobos, ou seja, os agentes públicos que agem em desconformidade com o princípio da moralidade e, também, aos terceiros que se beneficiam desses atos praticados (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. p. 21).
Nessa esteira, a ação judicial de improbidade administrativa, cuja natureza é de ação civil, admite a aplicação de regras processuais tanto da Lei nº 7.347/1985, de 24 de junho de 1985 – Lei da Ação Civil Pública – quanto da própria Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, permitindo, também, no que for compatível, a aplicabilidade das regras previstas no Código de Processo Civil (CPC), no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e no Código de Processo Penal (CPP), este último especialmente quanto ao inquérito civil.
Dentro desse contexto, destaca-se que mesmo sendo considerada uma norma civil, a lei de improbidade administrativa deve ser interpretada em conformidade com as leis penais. Com efeito, a sua aplicação suprime direitos e aplica penalidades, assemelhando-se à persecução penal, sendo sanções impactantes impostas na aplicação da lei de improbidade, por vezes, mais gravosas que muitas sanções penais.
O saudoso professor Nelson Hungria asseverou em sua obra “Ilícito administrativo e ilícito penal” inexistir uma distinção substancial no tocante a uma reprimenda convencional e uma sanção administrativa:
Se nada existe de substancialmente diverso entre ilícito administrativo e ilícito penal, é de negar-se igualmente que haja uma pena administrativa essencialmente distinta da pena criminal. Há também uma fundamental identidade entre uma e outra, posto que pena, seja de um lado, o mal infligido por lei como conseqüência de um ilícito e, por outro lado, um meio de intimidação ou coação psicológica na prevenção contra o ilícito. São espécies do mesmo genus. Seria esforço vão procurar distinguir, como coisas essencialmente heterogêneas, e.g., a multa administrativa e a multa de direito penal. Dir-se-á que só esta é conversível em prisão; mas isto representa maior gravidade, e não diversidade de fundo. E se há sanções em direito administrativo que o direito penal desconhece (embora nada impediria que as adotasse), nem por isso deixam de ser penas, com o mesmo caráter de contragolpe do ilícito à semelhança das penas criminais. (HUNGRIA Nelson. Ilícito administrativo e ilícito penal. Revista de Direito Administrativo. p. 17).
Por esta razão, as garantias processuais penais também se aplicam às ações de improbidade administrativa. O Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, em julgamento realizado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), consolidou esse entendimento em seu voto.
Em 05/02/2019, afirmou em seu voto que o processo judicial não pode se desvestir de defesa do acusado. Alegou, ainda, que as penalidades por improbidade afetam sensivelmente a liberdade do indivíduo, por vezes com mais dureza que as sanções penais.
Vê-se, portanto, significativa semelhança entre o disposto na ação de improbidade administrativa e o apresentado no Código de Processo Penal, restando-se “uníssona a doutrina no sentido de que, quanto aos aspectos sancionatórios da lei de improbidade, impõe-se exegese idêntica à que se empreende com relação às figuras típicas penais”, ou seja, trata-se de verdadeira “ação cível com cunho penal”, conforme julgado do REsp 721.190/CE, in verbis:
RECURSO ESPECIAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. APLICAÇÃO DO § 8º, DO ART. 17, DA LEI 8.429/92. AÇÃO DE CUNHO CIVIL, PENAL E ADMINISTRATIVO. TIPICIDADE ESTRITA. IMPROBIDADE E ILEGALIDADE. DIFERENÇA. AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL SUPERVENIENTE, MÁXIME PORQUANTO OS TIPOS DE IMPROBIDADE CONTRA OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO RECLAMAM RESULTADO.INOCORRÊNCIA DE IMPROBIDADE PRIMA FACIE. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL À SEMELHANÇA DO QUE OCORRE COM A REJEIÇÃO DA DENÚNCIA POR AUSÊNCIA DE TIPICIDADE (ART. 17, § 8º DA LEI 8.429/92) AFERIDA PELA INSTÂNCIA LOCAL COM RATIFICAÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. SÚMULA 7/STJ.
1. Ação de improbidade consistente em requisição de funcionários pelo juiz diretor do foro, com autorização do Tribunal hierarquicamente superior.
2. A questão positivista resta superada pela mais odiosa das exegeses, qual, a literal, por isso que se impõe observar se realmente toda ilegalidade encerra improbidade, sob pena de, em caso positivo, em qualquer esfera dos poderes da República, ressoar inafastável a conclusão inaceitável de que o errores in judicando e in procedendo dos magistrados implicam sempre e sempre improbidade, o que sobressai irrazoável.
3. Destarte, a improbidade arrasta a noção de ato imoral com forte conteúdo de corrupção econômica, o que não se coaduna com a hipótese dos autos assim analisada, verticalmente, pela instância a quo.
4. É uníssona a doutrina no sentido de que, quanto aos aspectos sancionatórios da Lei de Improbidade, impõe-se exegese idêntica a que se empreende com relação às figuras típicas penais, quanto à necessidade de a improbidade colorir-se de atuar imoral com feição de corrupção de natureza econômica.
5. Ato ímprobo que não produziu nenhum resultado, porquanto a requisição foi revogada, mercê de legal à época originária da requisição sem prejuízo do atestado serviço prestado pelos servidores requisitados, consoante sentença, pareceres ministeriais e acórdãos acostados nos autos e sindicados na instância a quo (Súmula 7/STJ).
6. In casu, o Ministério Público Federal, subsidiando o Tribunal a quo, concluiu pela atipicidade da conduta. No âmbito da improbidade, a atipicidade da conduta que no processo penal conduz à rejeição da denúncia, autoriza o indeferimento da inicial por impossibilidade jurídica do pedido.
7. Revogado o ato, e considerada a improbidade ilícito de resultado, ressoa evidente a falta de interesse superveniente, sem prejuízo da atipicidade apontada.
8. Ademais, a aferição da improbidade nas hipóteses em que a conduta é inferida e não descrita, notadamente naquelas infrações contra os princípios da Administração Pública, impõe-se a análise do fato ao ângulo da razoabilidade, por isso que, não obstante a indeterminação do conceito, assentou-se em notável sede clássica, que se não se sabe o que é razoável, é certo o que não é razoável, o bizarro, o desproporcional.
9. Sob esse enfoque, a requisição de funcionários por necessidade de serviço confirmada pela instância a quo, sequer resvala no conceito de improbidade ou imoralidade.
10. Ausente a concretização do suposto atuar ímprobo, sobressai a falta de interesse processual superveniente.
11. Tratando-se de ação cível com cunho penal, a atipicidade da conduta assemelha-se à impossibilidade jurídica do pedido, mercê da falta notória do interesse de agir quer por repressão quer por inibição, impondo o indeferimento da inicial e a conseqüente extinção do processo sem análise do mérito, por isso que ausente a violação do art. 267 do CPC.
12. Deveras, o atual § 8º do art. 17 da Lei 8.429/92 permite ao magistrado indeferir a inicial julgando improcedente a ação se se convencer da inexistência do ato de improbidade. Conseqüentemente, se assim o faz, não há violação da lei, senão seu cumprimento.
13. Outrossim, considerando que in casu o Tribunal local concluiu pela improcedência da ação com base na valoração dos fatos, na impossibilidade jurídica do pedido e na revogação do ato, esvaziando a suposta improbidade, tem-se que, mercê de inexistir violação do art. 267 do CPC, não é lícito ao STJ empreender a análise que engendrou o Tribunal local, sob pena de infringir a Súmula 7/STJ.
14. Recurso Especial parcialmente conhecido e desprovido. (STJ, 1ª Turma, REsp 721.190/CE, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 13/02/2006).
Resta-se claro, conforme demonstrado no julgado, o entendimento jurisprudencial dos Tribunais Superiores no sentido de que: “por não possuir natureza penal ou administrativa, a ação de improbidade é autônoma em relação a tais instâncias, não configurando óbice ao processamento da presente demanda a existência de ação penal em trâmite” (STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp n. 1.947.699/SP, rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 3/11/2021, DJe de 8/11/2021).
Na lição de Waldo Fazzio Junior (Atos de Improbidade Administrativa, 2008), a improbidade administrativa possui natureza híbrida, tanto que: a) o prazo prescricional será aquele estabelecido na lei penal, quando o fato também for previsto como crime; b) aplica-se o princípio da insignificância, a partir das premissas do Direito Penal (STJ, 1ª Turma, AgRg no REsp 968.447/PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 16/04/2015, DJe 18/05/2015); c) é necessária a tipificação da conduta do agente, bem como a dosimetria da pena; d) a Constituição Federal (CF) equipara a improbidade administrativa a ilícito penal, permitindo a perda ou a suspensão de direitos políticos apenas nos casos de condenação criminal transitada em julgado e de improbidade administrativa (CF, art. 15 c/c art. 37, § 4º); e) aplicam-se determinadas regras do Código de Processo Penal (Lei nº 8.429/92, art. 17, §12); f) depende do trânsito em julgado da sentença condenatória para produzir os efeitos de perda da função pública e suspensão dos direitos políticos (Lei nº 8.429/92, art. 20); e g) a ação é indisponível, não se admitindo transação (Lei nº 8.429/92, art. 17).
O STJ entende que devem ser aplicáveis às ações de improbidade administrativa todas as garantias constitucionais consagradas no direito processual penal, in verbis:
“(…) 8. A tipificação da conduta do agente, que é uma exigência tradicional na denúncia criminal (art. 41 do CPP), diz respeito à sua função viabilizadora, em primeiro lugar, da definição da competência jurisdicional e, em segundo lugar, da amplitude da defesa, como salienta EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA (Curso de Processo Penal, Belo Horizonte, Del Rey, 2006, p. 154); o Professor GUILHERME DE SOUZA NUCCI faz observação semelhante (CPP Comentado, São Paulo, RT, 2008, p. 156); essas lições são proveitosamente aplicáveis à formulação da Ação de Improbidade Administrativa.
9. No exercício da atividade punitiva a Administração pratica atos materialmente jurisdicionais, por isso que se submete à observância obrigatória de todas as garantias subjetivas consagradas no Processo Penal contemporâneo, onde não encontram abrigo as posturas autoritárias, arbitrárias ou desvinculadas dos valores da cultura (…) (STJ, 1ª Turma, REsp 1193248/MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 24/04/2014, DJe 18/08/2014).
Trata-se da aplicação do histórico brocardo ubi eadem ratio ibi ius, segundo o qual onde há o mesmo fundamento haverá o mesmo direito, prestigiando, assim, a coerência do raciocínio jurídico.
Nesse passo, em que pese a sua natureza extrapenal, a aplicação das sanções cominadas na Lei de Improbidade, não raro, haverá de ser direcionada pelos princípios básicos norteadores do direito processual penal, o qual sempre assumirá uma posição subsidiária no exercício do poder sancionador do Estado, já que este deflui de uma origem comum, a Constituição, e as normas penais, em razão de sua maior severidade, outorgam garantias mais amplas ao cidadão (GARCIA, Émerson. A lei de improbidade e a dosimetria de suas sanções. p. 37).
Assim, ainda que aplicáveis as regras processuais penais, os princípios constitucionais, como o contraditório e a ampla defesa, consubstanciados no art. 5º, LV, da Constituição Federal, são de fundamental observância no processamento e julgamento de ações que suprimem direitos. E com maior razão, devem ser aplicados ao trâmite de improbidade administrativa, considerando-se a gravidade das sanções aplicáveis, as quais, inclusive, restringem direitos fundamentais conferidos ao ser humano, e não direitos meramente patrimoniais.
A esse respeito, vale trazer os seguintes trechos do ilustre voto do saudoso Ministro Teori Albino Zavascki, indispensáveis para a compreensão da questão em análise:
(…) Embora as sanções aplicáveis aos atos de improbidade não tenham natureza penal, há profundos laços de identidade entre as duas espécies, seja quanto à sua função (que é punitiva e com finalidade pedagógica e intimidatória, visando a inibir novas infrações), seja quanto ao conteúdo.
(…) É justamente essa identidade substancial das penas que dá suporte à doutrina da unidade da pretensão punitiva (ius puniendi) do Estado, cuja principal consequência “é a aplicação de princípios comuns ao direito penal e ao direito administrativo sancionador, reforçando-se, nesse passo, as garantias individuais” (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador, SP:RT, 2000, p. 102; ENTERRIA, Eduardo García de; FERNANDEZ, Tomás Ramon. Curso de direito administrativo, trad. Arnaldo Setti, SP:RT, 1991, p. 890). Realmente, não parece lógico, do ponto de vista dos direitos fundamentais e dos postulados da dignidade da pessoa humana, que se invista o acusado das mais amplas garantias até mesmo quando deva responder por infração penal que produz simples pena de multa pecuniária e se lhe neguem garantias semelhantes quando a infração, conquanto administrativa, pode resultar em pena muito mais severa, como a perda de função pública ou a suspensão de direitos políticos. Por isso, embora não se possa traçar uma absoluta unidade de regime jurídico, não há dúvida que alguns princípios são comuns a qualquer sistema sancionatório, seja nos ilícitos penais, seja nos administrativos, entre eles o da legalidade, o da tipicidade, o da responsabilidade subjetiva, o do non bis in idem, o da presunção de inocência e o da individualização da pena, aqui enfatizados pela importância que têm para a adequada compreensão da Lei de Improbidade Administrativa (STF, Pleno, Pet 3240, Rel. Min. Teori Zavascki, Rel. p/ Acórdão: Min. Roberto Barroso, julgado em 10/05/2018, DJe 22/08/2018).
O limite que separa as sanções penais e as administrativas é puramente dogmático, e que a unidade de origem entre o direito penal e o direito administrativo é constitucional, pelo que, ambos os ramos, submetem-se aos mesmos princípios constitucionais que norteiam o poder punitivo estatal (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. p. 166.).
Superada essa questão, passa-se, doravante, à análise dos aspectos associados ao instituto da colaboração premiada e a possibilidade de seu processamento nas ações de improbidade administrativa.
II – Aspectos da colaboração premiada nas ações de improbidade administrativa
Com inspiração no direito comparado, o instituto da colaboração premiada, ou delação premiada, foi instituído, notadamente, pela Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, e é resultado de progressiva formalização pelos magistrados de competência criminal, ao longo de vários anos no trato da criminalidade organizada, tanto na área federal quanto na justiça estadual.
O eminente Desembargador Federal Fausto Martins de Sanctis, do Egrégio Tribunal Regional Federal da 3ª Região, esclarece em sua obra “Crime organizado e lavagem de dinheiro”, página 182:
A delação premiada, existente no Brasil desde as Ordenações Filipinas, é ética, útil e estratégica. Ética porque atende às finalidades político-criminais e à proteção do bem jurídico. Quando se ataca esse instituto, alegando-o não ético, na verdade está se invocando a “ética” do criminoso, que não aceita ser apontado por um comparsa. Útil pelo fato de permitir a descoberta precoce de crimes e seus autores ou partícipes, facilitando o trabalho de todos. Por fim, estratégica para as partes, inclusive à defesa, já que o cliente se vê beneficiado com uma pena relativizada sem o custo do processo.
A colaboração premiada, como meio de obtenção de prova, prevista no art. 3º, Lei nº 12.850/130, tem aptidão para autorizar a deflagração da investigação preliminar, visando adquirir coisas materiais, traços ou declarações dotadas de força probatória, conforme entendimento do STF, 2ª Turma, Inq 3998, Rel. Min. Edson Fachin, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Dias Toffoli, DJe 09/03/2018, isto é, referido instituto tem por propósito promover a rápida apuração dos ilícitos e de modo célere a aplicação das punições correspondentes em face de condutas de difícil comprovação (DIPP, 2015, p. 9).
Segundo Eugênio Pacelli Oliveira, no momento em que o negócio jurídico processual mitigar a indisponibilidade do interesse público, a colaboração premiada deve ser rigorosamente submetida ao controle judicial para que a vontade das partes se situe nos estritos termos autorizados pela lei.
Ademais, é imperioso principalmente ao magistrado verificar a real intenção do colaborador, conforme se extrai da seguinte lição do eminente Desembargador Federal Fausto Martins de Sanctis:
Não se pode invocar direito a não autoincriminação e direito ao silêncio, totalmente inaplicáveis ao instituto. Ou colabora, confessando e delatando, ou silencia e não se cogita de pleitear direito a delação ou reconhecimento da confissão. (…) A colaboração ou a delação premiada requer a vinda de informações úteis ao feito, a partir das quais pode-se reconhecer o direito subjetivo e dosá-lo adequadamente. Caso contrário, implicar-se-ia a irrelevância e descrença no instituto, tão útil para o descobrimento e o aprofundamento do crime organizado. (DE SANCTIS, Fausto Martins de Sanctis. Crime organizado e lavagem de dinheiro. 204-205).
Após a entrada em vigor de diversas normas que disciplinaram o referido meio de obtenção de prova, atualmente estão detalhados aspectos primordiais do instituto, tais como: a impossibilidade de participação do juiz nas negociações realizadas entre as partes, a forma de homologação do acordo de colaboração pelo juiz e a possibilidade de retratação da proposta e suas consequências jurídicas.
Sobre o tema, confira-se a seguinte passagem da decisão monocrática proferida pelo eminente Ministro Celso de Mello no MS nº 34.831:
A regulação legislativa do instituto da colaboração premiada importou em expressiva transformação do panorama penal vigente no Brasil, criando meios destinados a viabilizar e a forjar, juridicamente, um novo modelo de Justiça criminal que privilegia a ampliação do espaço de consenso e que valoriza, desse modo, na definição das controvérsias oriundas do ilícito criminal, a adoção de soluções fundadas na própria vontade dos sujeitos que compõem e integram a relação processual penal.
Esse aspecto que venho de referir mostra-se adequado a um modelo, iniciado na década de 1990, que claramente introduziu um novo paradigma de Justiça criminal, em que o elemento preponderante passa a ser o consenso dos protagonistas do próprio litígio penal.
Na realidade, a colaboração premiada ajusta-se, de certo modo, a esse novo paradigma que consagra, agora de maneira muito mais expressiva, considerado o marco normativo resultante da Lei nº 12.850/2013, um modelo de Justiça consensual, em que prevalece, tendo em vista os benefícios de ordem premial acessíveis ao autor do fato delituoso, o princípio da autonomia de sua vontade (sem os destaques e grifos originais).
Cabe consignar que o Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) prevê expressamente em seu artigo 190 uma cláusula geral de autorregramento das partes, permitindo a ampla realização de convenções processuais atípicas. Não se pode perder de vista, por oportuno, a premissa fundamental de que os acordos de colaboração premiada são espécie de negócio jurídico processual. Diante de tal situação, é possível conceber a colaboração premiada em ações de improbidade administrativa como espécie de negócio processual atípico, tomando por empréstimo as balizas da supracitada Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/2012) e da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), aplicadas por analogia (TAVARES, João Paulo Lordelo Guimarães. A aplicação do instituto da colaboração premiada nas ações de improbidade administrativa. Coletânea de artigos: avanços e desafios no combate à corrupção após 25 anos de vigência da Lei de Improbidade Administrativa. Brasília: MPF, 2018. p. 28-51).
Superado esse ponto, destaque-se que a Suprema Corte, ampliando o princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa, entendeu que padece de nulidade o processo penal quando a defesa não se manifestar após as alegações finais apresentadas pelo colaborador (ou delator) premiado, in verbis:
Nesse sentido, o direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa deve permear todo o processo legal, garantindo-se sempre a possibilidade de manifestações oportunas da defesa, bem como a possibilidade de se fazer ouvir no julgamento e de oferecer, por último, os memoriais de alegações finais. Pouco importa, na espécie, a qualificação jurídica do agente acusador: Ministério Público ou corréu colaborador.
A colaboração premiada possui natureza jurídica de meio de obtenção de prova (Lei 12.850/2013, art. 3º, I). Permitir, pois, o oferecimento de memoriais escritos de réus colaboradores, de forma simultânea ou depois da defesa — sobretudo no caso de utilização desse meio de prova para prolação de édito condenatório — comprometeria o pleno exercício do contraditório, que pressupõe o direito de a defesa falar por último, a fim de poder reagir às manifestações acusatórias.
(…) A inversão processual consagrada pela intelecção que prestigia a manifestação final de réus colaboradores por último, ou simultaneamente, ocasiona sério prejuízo ao delatado, que não pode se manifestar para repelir os argumentos eventualmente incriminatórios ou para reforçar os favoráveis.
(…) Fere, igualmente, as garantias de defesa, todo expediente que impede o acusado, por meio do defensor, de usar sua palavra por último. Isso porque, independentemente de estar despida de roupagem acusatória, a peça processual das alegações finais, ao condensar todo o histórico probatório, pode ser determinante ao resultado desfavorável do julgamento em relação ao acusado, o que legitima este a merecer a oportunidade de exercitar o contraditório.
O prejuízo da defesa é, portanto, induvidoso. Só se poderia afastar o nexo entre o defeito processual e a certeza do prejuízo da defesa se o resultado do julgamento tivesse sido favorável a ela. Isso não se verifica na hipótese de condenação (trecho transcrito do Informativo 949 (STF, HC 157.627/PR, 2ª Turma em 27/08/2019, rel. orig. Min. Edson Fachin, redator para o acórdão Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 27/08/2019 – mais recente: HC 166373/PR, suspenso em 02/10/2019 para fixar a tese).
Nesse mesmo sentido, o eminente Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, do Colendo STJ, deu “provimento ao recurso ordinário em habeas corpus, para anular a Ação Penal n. 0002176-18.2017.4.03.6181 (Juízo da 5ª Vara Federal de São Paulo) a partir das alegações finais apresentadas pela defesa, determinando-se que, primeiramente, as defesas escritas sejam apresentadas pelas corrés colaboradoras e, somente após (prazo sucessivo), sejam apresentadas as alegações finais dos demais réus”, decisão essa posteriormente confirmada pela Egrégia 5ª Turma daquele Tribunal da Cidadania, cujo julgado foi ementado nos seguintes termos:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. PEDIDO DE APRESENTAÇÃO DE ALEGAÇÃO FINAIS SUCESSIVAS ENTRE O COLABORADOR E O DELATADO. ENTENDIMENTO FIRMADO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO DO HC N. 166.373/PR. PREJUÍZO ÍNSITO. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. PEDIDO FORMULADO A TEMPO E MODO. PRECLUSÃO AFASTADA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
1. No julgamento do HC-166.373/PR, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, decidiu que as alegações finais dos réus colaboradores, quando possuem carga acusatória, devem anteceder os memoriais dos corréus delatados, sob pena de violação dos princípíos constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
2. Embora na oportunidade tenha se assentado que a Suprema Corte formularia a tese jurídica sobre a matéria, para definir os critérios de aplicação da nova interpretação, sobretudo eventual modulação de efeitos, tal fato ainda não ocorreu. Desse modo, da leitura do informativo 954/STF, concluiu-se que “constitui verdadeiro obstáculo judicial ao exercício do contraditório e da ampla defesa a concessão de prazo comum a todos os litisconsortes penais passivos, os quais figurem, simultaneamente, numa mesma relação processual penal, agentes colaboradores e corréus por estes delatados”.
3. Desse modo, a inobservância dos mandamentos constitucionais da ampla defesa e do contraditório macula o ato judicial firmado com nulidade absoluta, tamanha a gravidade do vício que sobre ele se abate, não necessitando da comprovação do prejuízo, uma vez que ele está implícito no descumprimento dos preceitos fundamentais. Não se pode perder de vista que o prejuízo também é diretamente decorrente da prolatação de sentença penal condenatória, cuja pena imposta à agravada foi superior a 24 (vinte e quatro) anos de reclusão.
4. Por outro lado, a única exigência, até o momento, para a declaração da nulidade aqui examinada, diz respeito à necessidade de o vício ser alegado a tempo e modo, ou seja, na primeira oportunidade em que a defesa pode se manifestar nos autos, evitando, assim, a malfadada “nulidade guardada”, em que falha processual sirva como uma ‘carta na manga’, para utilização eventual e oportuna pela parte, apenas caso seja do seu interesse (HC 452.528/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 12/05/2020, DJe 19/05/2020). No caso, a defesa requereu, desde o início, o direito da recorrente delatada apresentar as alegações finais após as corrés colaboradoras, o que afasta a preclusão.
5. Agravo regimental improvido. (STJ, 5ª Turma, AgRg no RHC n. 119.520/SP, Relator Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 25/8/2020, DJe de 31/8/2020).
Embora proferido em processo penal, os precedentes acima referidos são aplicáveis às ações de improbidade administrativa, pois: a) as garantias processuais penais se aplicam à ação de improbidade administrativa; e b) a ratio decidendi do Colendo STF trata do princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa, sem se restringir ao processo penal, conforme dito alhures.
O princípio constitucional do contraditório garante que a defesa tem o direito de se manifestar por último, observando-se a dialética do processo. Só assim lhe é assegurado repelir os argumentos incriminatórios trazidos pelo acusador/delator, ou seja, é direito constitucional do acusado se manifestar por último, após a apresentação das alegações finais do seu corréu colaborador premiado, especialmente quando a condenação resulta justamente das alegações fornecidas por este, caracterizando-se o evidente prejuízo.
Referências
______. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Planalto.
______. Lei nº 12.850 de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil – edição extra. 5 de ago. de 2013.
______. Lei nº 8.429 de 2 de junho 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 3 de jun. de 1992.
______.STF, 2ª Turma, HC 157.627/PR, rel. orig. Min. Edson Fachin, redator para o acórdão Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 27/08/2019.
______.STF, Decisão monocrática, Rel. Min. Celso de Mello, proferida em 04/08/20217, DJe 09/08/2017.
______.STF, Pleno, ARE 1175650, Rel. Min. Alexandre de Moraes. Em julgamento.
______.STF, Pleno, Pet 3240, Rel. Min. Teori Zavascki, Rel. p/ Acórdão: Min. Roberto Barroso, julgado em 10/05/2018, DJe 22-08-2018.
______.STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp n. 1.947.699/SP, rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 3/11/2021, DJe de 8/11/2021
______.STJ, 1ª Turma, AgInt nos EDcl no REsp 1745654/SP, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 05/02/2019, DJe 04/04/2019.
______.STJ, 1ª Turma, REsp 1193248/MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 24/04/2014, DJe 18/08/2014.
______.STJ, 5ª Turma, AgRg no RHC n. 119.520/SP, Relator Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 25/8/2020, DJe de 31/8/2020.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
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